quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Corrente

"um dia tudo passa...
Passa o vento que soprou,
O amor que murchou
A decepção que seu coração quebrou...
Um dia tudo muda, 
Muda de endereço, 
Muda de preço
E ai você me pergunta, mas pra onde foi aquele que você era? Pra onde foram seus sonhos?
E eu te respondo, foram procurar felicidade, felicidade de verdade, porque de mentiras a terra esta coberta de ponta a ponta."
Eu não tenho ideia de quem seja esses versos (posso estar cometendo uma gafe sem tamanho, mas realmente não sei), mas é inegável o real poder dessas palavras.
Nós passamos boa parte da vida derramando lágrimas por milhões de motivos; por amores, por decepções de diversas formas, por ex-amigos, antigos formatos de vida, por perdas.
Realmente, a vida não é um mar de rosas. Nem tudo o que vivemos é motivo de alegria e risos, mas daí ficar chorando nos cantos é outra coisa. Nem todas as nossas ações são admiráveis, principalmente para a sociedade julgadora que não tem ideia do peso que você carrega nas costas. Só você sabe quantos quilos tem o seu tormento.
Até bem pouco tempo achava que uma das coisas mais duras no mundo era o rompimento. Verbo romper no dicionário é descrito como “dividir, partir, separar com violência; despedaçar, dilacerar, quebrar: Romper grades, paredes. Romper as malhas da intriga. "Romper-se o mar nos rochedos”.
Essa explicação dói só de ler, mas na vida aprendemos que deixar romper algumas coisas pode ser um exercício saudável para se seguir em frente.
Fiquei pensando na velha expressão “romper correntes”. Lembrei de imediato do herói não convencional Quasimodo, conhecido popularmente como O Corcunda de Notre-Dame. A história do personagem de Victor Hugo foi diversas vezes adaptada ao cinema. Para mim, a mais clássica dessas interpretações do romance francês foi feita pela Disney em 1996.
Uma cena que ficou marcada em minha mente é quando o Quasi (nome carinhoso dito no filme que eu acabo de me apropriar) fora acorrentado por seu padrinho maléfico. Do alto da catedral ele assiste ao brutal espetáculo da preparação da morte de sua amada Esmeralda, uma cigana que ignorou o amor doentio do mau caráter e por isso é condenada às chamas pela (cavada) acusação de bruxaria.
Vendo aquela devastação, seus amigos gárgulas (imaginários personagens de pedra) o incentivam a largar aquelas amarras. Sair dali, quebrar as correntes. Mas Quasi nada faz. Uma das gárgulas se volta para ele e diz: “Nós somos feitos de pedra. Achei que você fosse feito de algo melhor”.
Quasi então decide desafiar seu destino de perdedor. Se revolta contra seu ídolo podre (o padrinho), esquece o povo que sempre zombou de sua aparência e resolve tentar salvar Esmeralda. Quebra, literalmente, as correntes e vai. O ato lhe rende respeito e uma vida inteiramente nova.
A cena que ficou no meu imaginário desde a infância, hoje ajuda a entender como esse ato de romper as correntes é importante. Certas vezes deixar coisas para trás, pessoas, vidas que mudam, é quebrar correntes. Desapegar daquilo que um dia lhe aprisionou, mas que no costume você achou que era uma forma de felicidade – talvez a única que os seus olhos podiam ver. Quando estamos aprisionados, quando não sabemos o que tem do outro lado, terminamos por acreditar que aquela desgraçada vida é tudo que nos resta.
A dor do romper é latejante, quase sufoca. Muitas vezes essa agonia nos dá o entender que erramos, radicalizamos. Bate o medo e a saudade. Aquela vontade imensa de voltar no tempo e tentar de novo, até que um dia, resistindo às tentações de reviver o próprio mundo que fadou ao fracasso e hoje finalmente é morto, é lápide, acorda e entende que além daquela linha tênue entre as lágrimas de medo e a realidade existe vida.
O processo do fim é tremendamente desgastante, mas daí eu roubo a explicação do poeta Ferreira Goulart: “E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade”.
Nada rompe se for bom. As correntes só estouram ao meio se lhe forem empregada muita força ou, simplesmente, estiverem enferrujadas, enfraquecidas... podres. Para essa, o melhor destino é o lixo. E adeus.
Marcos Ferreira Silva

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O barco

Para Sabrina da Cruz
Sabe, um dia encontrei um barco na beira do mar. Um mar revolto, cheio de ondas ferozes. Era perigo eminente. Sem pensar muito, entrei no barco. Era uma canoagem pequena, alguns minúsculos compartilhamentos. Havia quatro remos; dois de um lado e dois do outro. Era óbvio que a embarcação precisava de duas pessoas para comandá-la. Não entendia nada de barcos, nem mesmo a razão daquele equipamento não poder ser guiado apenas por um sujeito. Bobagem, não queria velocidade, queria só chegar do outro lado.
Observei o horizonte, a vista turva. As nuvens pesadas. Senti uma lágrima de chuva pousar em meu rosto. As gostas faziam cócegas na superfície do mar. Não me intimidei. Comecei a mexer no barco ali aportado, empurrando-o para o oceano.
Com um pouco de trabalho, consegui desprende-lo da costa sem arranhar o casco nas pedras. Tinha um profundo receio de furar alguma parte daquela embarcação e, sem perceber, seguir viagem e acabar naufragando. O medo impulsionou um perfeccionismo que nunca detive. Chequei cada parte do pequeno barco. Averiguei todos os detalhes e me dei conta apenas de uma coisa: o que fazer com os dois remos extras?
Retirei as duas hastes grandes e pesadas e larguei ali mesmo na praia. Sentei-me no barco e fui mar adentro. O frágil barco seguia seu caminho com dificuldade, forcei o braço o quanto pude, com a intenção de dar mais impulso ao veículo. A chuva engrossava e eu já tinha o corpo todo encharcado. As roupas pesavam e os movimentos estavam ficando retardados. Os remos pesavam uma tonelada.
Um raio cortou o céu. Um arrepio tomou minha espinha. Tremi. Pensei em livrar-me daquela blusa, que de tão molhada não permitia os meus movimentos, mas não podia largar os remos. Novamente o medo veio me visitar. E se soltasse os remos e o mar os levasse embora? O que seria de mim? Fiz algo que não devia ter feito: olhei para trás e já não enxerguei a praia. Estava sendo engolido pelo mar.
Enfim entendi o motivo do barco precisar de dois remadores. Não tinha mais controle da embarcação. Andava em círculos sem me dar conta. Os ventos estavam cada vez mais pavorosos. Não queria admitir, mas estava no meio de uma tempestade, sem sequer saber para que lado estava o norte ou o sul.
O mar não perdoou minha ousadia. Os ventos fortes jogaram uma imensa onda sobre mim e o pobre barco não aguentou. Víramos no meio do oceano. Um trovão estridente e impiedoso seguiu o clarão do raio, batizando o meu fracasso.
Estava à deriva, pronto para morrer ali mesmo. Num breve lapso de consciência, agarrei-me ao barco capotado e o abracei como se ele, sem o meu comando, pudesse me salvar. Fui arremessado por um sopro divino e, sem me dar conta, fui jogado na beira da praia novamente. Estava vivo. E isso era um milagre.
As nuvens se dispersaram e o sol abriu no meio do céu. Primeiro uma pequena fresta entre as nuvens, e logo já era novamente brilhante como numa manhã de verão.
Estava tudo acabado. Nunca chegaria do outro lado. À minha direita o barco, impressionantemente intacto. Os remos foram devolvidos pelo mar. Aqueles que eu havia deixado na praia sumiram. Não adiantava mais correr. Era melhor ficar ali mesmo e lamentar o fracasso. Fechei os olhos e abaixei a cabeça em meio aos joelhos. Senti uma mão em meu ombro. Era uma mão confortante. Levantei-me e encarei a figura de sorriso doce e olhar penetrante. Era você. Em suas mãos os remos que eu, teimosamente, tinha largado na praia sem saber da importância.
Não precisei fazer nada, você mesma desvirou a embarcação suja de areia. Com um pano que trazia como de caso pensado, limpou o barquinho. Tirou do bolso uma bússola e me entregou. Entrou no barco e disse: “vai chover de novo”. Respondi: “é melhor ficarmos aqui então”. “Não é melhor irmos”, você retrucou.
Você posicionou os remos na posição certa e falou: “pegue os seus, agora você não vai afundar, vou remar com você”.
Cismado, perguntei: “por que está fazendo isso?”. Você pausou e respondeu: “esperei minha vida inteira por alguém que remasse comigo. E aqui está você. Vamos logo, precisamos chegar do outro lado”.
Teimoso, eu interroguei novamente: “mas não apareceu ninguém nesses anos todos?”. Você docemente falou: “até surgiram algumas pessoas, mas te vendo querendo chegar do outro lado, eu tenho certeza que é você. Só você. Vamos!”.
Marcos Ferreira Silva