sábado, 4 de dezembro de 2010

Analgésicos para os Urubus do Cinema

Os Urubus cercam o agreste seco e sofrido do cineasta pernambucano Marcelo Gomes. Juntando-se a um caminhão de Aspirinas que circula aquelas terras no ambientado ano de 1942, o diretor levou ao Cinema um projeto lindíssimo em cima de um roteiro que foca uma amizade peculiar. Uma espécie de Chicó e João Grilo (O Auto da Compadecida – Ariano Suassuna) de mundos diferentes, mais sisudos, porém igualmente sinceros. Uma equilibrada mistura de drama e comédia que nos são apresentados com o uma simplicidade invejável.
Os dois amigos vividos no Longa-metragem Cinema, Aspirinas e Urubus são protagonizados pelo baiano João Miguel e pelo alemão Peter Ketnath. Dois seres de mundos inteiramente opostos que vêem suas histórias cruzadas no sertão brasileiro. Peter é Johann, um alemão driblando a guerra e se refugiando no nordeste brasileiro. João Miguel é Ranulpho, um paraibano que sonha em lagar sua terra natal atrás de novas oportunidades longe daquela “terra triste”. Tudo que os dois têm em comum é o desejo de mudar de vida, de construir novas realidades para suas histórias.
Ranulpho é o retrato de um sertanejo que sonha em viver uma vida distante do sofrimento do ‘sertão da fome’ e da seca. Suas esperanças se renovam quando Johann cruza seu caminho com um caminhão de Aspirinas, vendendo-as como um sonho numa tela de cinema – literalmente. Exibindo comerciais do produto numa sessão improvisada com lençóis, o alemão apresenta um mundo desconhecido ao povo dos lugares onde passa.
Marcelo Gomes levou as telas um filme que retrata o sertão nordestino de quase 70 anos atrás, mas que ainda contrasta muitas semelhanças com a terra do ‘bolsa família’ dos dias de hoje.
Estreante, mas com o talento de um veterano, o cineasta apresenta “o inusitado encontro de um alemão em busca de paz com um nordestino em busca de um sentido para a vida, somado ao encanto que o cinema proporciona mesmo num comercial de Aspirina. Rende momentos de pura poesia neo-realista” (Erika Liporaci, jornalista e colunista - 02/01/2005).
O filme nos carrega sem medo para o meio do nordeste. O longa, filmado com poucas câmeras, faz de cada uma delas o olho de quem passa por aquelas terras. Coloca-nos na altura dos olhos do povo que vê a seca destruindo suas vidas e em seus diálogos retrata o que é a realidade quando o mundo parece nos virar as costas.
Com uma fotografia deslumbrante – vencedora nesta categoria do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 2005 – o que vemos é um céu amarelo e com terra branca e cinza. Marcelo Gomes explica os motivos da escolha nos pedindo uma reflexão: “Imagine a pupila dilatada de um alemão que chega ao sertão e um sertanejo fugindo da seca. Para os dois, aquele lugar precisa parecer um terreno hostil”. Daí esse sertão branco, sem um céu azul produzido pelo diretor de fotografia Mauro Pinheiro.
A história contada no filme é um relato do tio avô de Marcelo Gomes, mas o que chamou a atenção do cineasta e é o ponto chave da história é a universalidade de tudo. “São dois fugitivos procurando um caminho melhor para suas vidas. Tomar conta do seu destino. E nisso entra a dificuldade, o drama de ser errante” – diz ele. Durante o filme, os personagens vão se transformando a ponto do protagonista deixar seu posto para o coadjuvante do enredo no momento em que os dois personagens começam a entender suas diferenças na troca de olhares.
As boas interpretações de Peter Ketnath e João Miguel são acompanhadas a altura pelos outros atores, na grande maioria, formados por nordestinos que nem eram atores por profissão, mas sertanejos legítimos que ajudaram a transpor a realidade ao filme. Com vozes baixas e olhares cansados, esses coadjuvantes roubam a cena com a interpretação de um lugar refletido em suas íris.
No caminhão do alemão Johann, as músicas que ressoam as cenas são tiradas do acervo do museu de discos de vinil de Christiano Câmara, que já rendeu o curta-metragem ”Rua Escadinha 162”. O diretor musical Tomás Alves de Souza separou os hits de 1942 para compor sua ambientação.
Com a produção de Sara Silveira, Maria Ionescu e João Vieira Jr, o filme lançado em 2005 venceu diversos prêmios pelo mundo. Além de ser destaque no festival de Cannes, venceu o prêmio de Educação Nacional Francesa e foi uma das apostas brasileiras entre os pré-indicados ao Oscar de 2007.
Por conta do prêmio de Educação em Cannes, o filme é exibido até hoje para milhões de estudantes em várias partes do mundo, mas nunca foi um arrasa quarteirão nas telas do cinema, talvez devido a sua temática realista, que muitos podem achar uma ferida dolorida demais para ser vista, porém trata-se de uma obra que deve ser conferida pelo simples fato de ajudar o Brasil a dar a expressão 7º arte ao cinema.
Marcos Ferreira Silva

Um comentário:

  1. Interessante como o cinema brasileiro tem tanto a nos oferecer sobre a nossa cultura, sob o nosso Brasil.

    Como sempre texto perfeito!! Indicação fascinante. A cada vez que eu passo aqui eu me surpreendo mais... e isso não tem preço!!

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