segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A última página de um livro


Dia 2 de novembro... Finados. Não é uma data alegre, mas vale uma singela homenagem para alguém especial. Peço que leiam, são palavras para o coração.
Desculpe o tamanho do texto, mas esta homenagem não poderia ser resumida em 10 linhas... 
* de um dia muito especial
+ 10/06/2008
(Homenagem à Laura Nienwenhoff Matos - Laulau)
"A nossa vida é igual a um livro" – ouvi isso numa entrevista feita com, se não me engano, o Paulo Autran, e nunca tive como discordar.
Vivemos os momentos iniciais, transcorremos todo o livro com momentos tanto triunfais quanto catastróficos e finalizamos a história - felizes, tristes, decepcionados ou com aquele sorriso bobo no rosto, esperando que todas as sucessoras leituras sejam tão magníficas quanto à que acaba de terminar. Tem também aquela que termina com uma simples satisfação, porém, queira ou não queira, sabemos que esqueceremos em breve. Não marcou.
Nossa vida pode ser mística como um enredo de Paulo Coelho, louca e quase sem sentido como as magníficas histórias de André Vianco, misteriosa igual um triller de Sidney Sheldon ou lindas como as emocionadas páginas marcadas por Zélia Gatai e Jorge Amado.
Porém a última página de um livro é definitivamente a mais difícil. É quando todo aquele ciclo é fechado e você lê “Fim” ou “The End”, como última palavra depois de todo aquele emaranhado de letras.
Algumas vezes achamos que o fim chegou na hora errada. Tarde ou cedo demais. Outras vezes lamentamos, mas não deixamos de contemplar e aplaudir aquela saga magnífica. Ficamos num misto de lamentação e satisfação, paradoxal demais para ser realmente entendido. Em algumas situações, simplesmente não aceitamos isso o que chamam de fim... E é esta a parte que dói mais...
A nossa vida é exatamente assim.
No último dez de junho, era uma terça-feira ensolarada, fazia frio e, contudo, o sol brilhava misteriosamente. O fatídico ano era dois mil e oito. A casa ao lado da minha estava lotada de pessoas. Amigos, vizinhos, amigos de parentes e parentes de vizinhos enchiam a residência de penar. Um abraço aqui, uma lágrima acolá e um pranto dolorido no primeiro quarto do corredor.
Quem estava feliz ficou triste. Quem não se importava se importou. Havia um sentimento que desejava mudar aquela cena que parecia um drama cinematográfico, mas não éramos o autor do roteiro, então não nos cabia interferir no encerramento daquele enredo. Quem deu fim à trama não nos consultou para saber se queríamos ou não aquele desfecho. Não éramos seu público-alvo.
A cadela deitada ao lado da cama de seu dono tinha os olhos tristes, sentia que uma vida havia se expirado naquela manhã.
Doía no coração de quem presenciou o desenrolar daquele romance, para todos que visitavam aquela casinha que em alguns momentos parecia meio encantada, com comigo-ninguém-pode no canto da parede, samambaias penduradas no teto e violetas na janela... Pedrinhas coloridas abrilhantavam a estante em mogno, como uma estradinha em contos de fada. Sucumbia-se o coração de quem parava para ver, no porta-retrato, a foto em branco e preto do falecido marido. Nela, o chefe da família falava em um rádio. Parecia um padroeiro vigiando de longe tudo o que acontecia, fazendo do pequeno quadro uma imagem que montava companhia às demais molduras com Santos espalhadas pela sala.
Laura Nienwenhoff havia partido e todos lamentavam. Alguns seguravam o choro, tentavam se preocupar com enterro e velório. Datas e horas. Tudo tipicamente humano... Hora pra tudo.
O Espelho de formato oval continuava no mesmo lugar, como nos últimos vinte e cinco anos.
Os dedos estalavam e as lágrimas desciam. Uns rezavam, outros continham o pranto, alguns nem pensavam.
A temperatura baixa era abatida com o sol que cortava o ar e esquentava o corpo e o coração de quem estava na sacada.
O livro finalmente se fechara. A derradeira página estava escrita, infelizmente editada e lançada a todos...
[...] Laura caminhava assustada, aflita. Percorria um caminho bonito. O céu estava claro. Parecia que a paisagem viajava do mar ao infinito azul do céu, envolto de uma neblina incrivelmente agradável. Não fazia frio nem calor. Procurou um relógio para saber das horas ou uma placa que indicasse onde estava, mas não achou nada. A única coisa que lembrava é de ter visto um monte de médicos ao seu redor e depois agarrado num sono profundo. Finalmente, depois de meses, tinha tido um sono tranquilo, sem dores nem falta de ar. Agora, do nada, via-se caminhando sem saber para onde. Sorriu porque mesmo não sabendo que lugar era aquele, ao menos não estava deitada em uma cama de hospital.
Teria fugido? – perguntou intimamente – Oras, se tivesse fugido como uma sonâmbula, o inconsciente tinha sido feliz na decisão.
Continuou andando até que viu damas da noite nascendo rasteira ao lado da estradinha. Agachou-se para contemplar a plantinha. Os joelhos e a coluna não doeram com o movimento. Ao esticar o braço para tocá-las, notou que sua mão não tinha mais aquelas manchas escuras e a pele estava muito mais jovem. Ficou com uma vontade louca de ver como estava seu rosto, mas não tinha espelho para refletir-se. O vestido florido balançou-se com a brisa gostosa que passeava pelo céu. Estava curada. Deus havia operado o milagre que tanto pedira. De repente, ela foi assaltada por um pensamento lógico: E sua família onde estava? Seus amigos? – lembrou do filho, da nora, da irmã e da vizinha, queria contar-lhes a novidade. Olhou por todos os lados e não encontrou o caminho de volta. Uma lágrima desceu pelo rosto, agora sem rugas. Ficou parada na estradinha, entre as damas da noite e as pedrinhas que lembravam algumas que ela achava no quintal da casa no interior do Paraná, onde passará toda a infância. Ergueu a cabeça e viu um vulto no horizonte. Era um homem. Ele caminhava em sua direção. Laura olhou o céu azulado e depois para o sol forte que embaçou sua visão. Pressionou os olhos para voltarem ao normal. Olhou novamente para o homenzinho que se aproximava. Nessa hora seus olhos encheram-se mais uma vez de lágrimas, mas agora era de pura felicidade. Sugou forças para chamar seu nome. Achou que sua voz não sairia, mas saiu:
_Bastião, é você homem?
O marido lhe sorriu com um ar jovial. Os dois se abraçaram depois de oito anos.
Ela olhou no fundo de seus olhos serenos.
_Cadê o Anderson? – perguntou ela, com o típico sotaque arrastando a letra R.
_Fica tranquila Laura, o ‘Hanzo’ vai ficar bem.
Encararam-se por um instante como se não pudessem acreditar no que viviam.
_Vem comigo Laulau, aqui nós vamos descansar. Não existe tempo nem dor. Vamos. – disse ele estendendo a mão em sua direção.
_Laulau?! – sorriu Laura surpresa – Já ouvi isso, mas nunca de você.
Ela segurou a mão do marido e continuaram a caminhar. Naquele instante uma multidão de velhos amigos apareceu para cumprimentá-la e então se deu conta de que esse livro nunca teria fim, apenas mudara de página... Sem ponto final... Apenas três pontos...
Marcos Ferreira Silva

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